O corpo humano tem um "reloginho" que regula o
ritmo de um grande número de processos biológicos a cada 24 horas, como o
apetite, o sono e a vigília. Ele é o responsável por “aquela” preguiça pela
manhã e uma enorme disposição no meio da tarde, ou vice-versa. Vontade de comer
doce após o almoço e dificuldade para dormir cedo? Bota também na conta do
relógio biológico, ou relógio circadiano, que está presente em praticamente
todos os organismos há centenas de anos — desde quando o dia a dia do homem não
sofria constantes interferências externas.
“Quando se fala em ciência da fisiologia do exercício, o
estudo do ciclo circadiano é de enorme complexidade, pois o ser humano,
controlado pelo hipotálamo, foi orquestrado em seus horários de sono, vigília,
alimentação, ações de digestão, micção urinária, reflexos, dentre outros. A luz
do dia, por exemplo, tem participação direta sobre nosso relógio biológico”,
explica Raul Santo de Oliveira, fisiologista e doutor pela Universidade Federal
de São Paulo (USP).
Ciclo Vigília-sono
Para não sofrer na saúde as consequências dos desajustes dos
ponteiros, precisamos respeitar o ritmo do nosso corpo. Mas eis que a sua
agenda (ou o relógio físico) não bate com esse ritmo e que, para treinar
durante a semana, você acorda quando ainda está escuro.
Nervosismo, sonolência, desconfortos gástricos, renais e
digestivos são alguns dos problemas de saúde que podem ser causados por esse
desajuste. Você se levanta da cama exausto, como se pesasse 20 kg a mais e
demora horas para entrar no ritmo. Às vezes, nem entra. Isso acontece porque um
fator externo, como o despertador, por exemplo, interrompeu um ciclo, o
vigília-sono, antes da presença da luz, o que atua diretamente na queda dos
níveis de melanina no organismo. Com isso, o seu organismo é forçado a entrar
no estado de vigília antes do previsto. A partir daí, todo o ciclo entra em
desordem.
Com o tempo — e uma enorme força de vontade — o organismo vai
se ajustando aos novos horários, mas até lá a saúde sofre vários danos. “A
adaptação demora um pouco, mas acontece, até por uma nova exigência da vida e
da rotina. O sujeito precisa se esforçar para ensinar ao corpo uma nova mudança
nos horários de treinos, por exemplo”, diz o fisiologista.
Melhor Horário
Seguindo os padrões fisiológicos, o melhor horário de treino,
quando os hormônios estimulantes encontram-se no pico, será de duas a três
horas após o despertar. Também pode ser no meio da tarde. Por isso a maioria
das provas e competições é realizada pela manhã — e os atletas de ponta acordam
bem antes da largada, para que o corpo também desperte. “Enquanto você dorme, o
seu batimento está mais lento, a pressão mais baixa, assim como a temperatura e
a frequência cardíaca. Sua respiração está mais amena e seus hormônios
responsáveis pelo descanso estão agindo. Ao acordar, esses valores vão se
alterando gradativamente até chegarem à normalidade”, detalha João Vicente da
Silveira, cardiologista do Hospital e Maternidade São Luiz da unidade Anália
Franco.
Três horas após o despertar, o indivíduo está esperto e no
pico da vigília. Então, a capacidade de reter informações na memória funciona
melhor. “É a melhor hora para estudar e treinar”, afirma o especialista. O
ideal, na avaliação do médico, seria que todo treino matinal fosse precedido de
uma fase de preparação antes do esforço. Mas, como a rotina diária não nos
permite dar esse tempo, o melhor é que os atletas façam mesmo um acompanhamento
médico e exames de rotina, para descartar qualquer risco coronário.
“Por volta das 6h da manhã e perto das 9h da noite são os
períodos em que mais ocorrem acidentes cardiovasculares, infartos ou derrames”,
alerta o dr. João Vicente. “É justamente nesses momentos que a maioria dos
atletas treina, ficando mais sujeita a complicações.”
O perigo está em estimular o organismo num momento em que ele
ainda está em repouso ou se preparando para entrar em descanso. “Imagine que o
sujeito está com as veias e artérias relaxadas, a pressão baixa, o batimento
cardíaco baixo. Então ele é submetido a picos de adrenalina e noradrenalina, a
atividade física acelera seus batimentos e a pressão sobe rapidamente. Se tiver
qualquer arritmia ou problema coronário, ele estará propício a um infarto e até
à morte”, avisa o cardiologista do Hospital e Maternidade São Luiz.
Daí a importância, ressalta o especialista, de entender bem
como funciona o corpo de uma forma individual e adaptar a atividade física aos
reais padrões fisiológicos. Além, é claro, da investigação de doenças ou
predisposições a problemas cardiovasculares.
Adapte-se ou relaxe
Se a sua rotina não é a de uma atleta de ponta, pode ser que
você sempre tenha dificuldade em treinar em um horário e competir em outro. Ou
que seu rendimento seja bem melhor no treino do que na competição, porque você
está mais disposto no fim da tarde do que no início da manhã. Ou até que, mesmo
insistindo em acordar cedo para treinar no horário mais próximo da realidade
das competições, você sempre tenha aquela sensação de que podia ter dado mais
de si. De fato, isso acontece. “Os atletas profissionais, em sua grande
maioria, treinam, principalmente, no período da manhã. No período da tarde,
acabam tendo treino técnico ou orientação. Mas o treino pesado é quase sempre
realizado pela manhã”, explica o fisiologista Raul Santo de Oliveira.
Como a maioria dos atletas amadores não tem disponibilidade
de tempo para treinar no horário mais apropriado, seu organismo necessita
passar por algumas adaptações. “O mais indicado é fazer todos os treinos —
físicos, técnicos, psicológicos, intelectuais, entre outros — o mais próximo da
realidade da competição. Chamamos isso de especificidade de treinamento”, diz o
fisiologista. Este é, segundo o médico, um importante princípio do treinamento
desportivo.
Raul Santo explica que, entre os atletas profissionais, é
quase uma unanimidade o estabelecimento de uma faixa de treino durante a luz do
dia e de descanso no período da noite. “Mas para nós, mortais comuns, que
estamos fora do esporte de alto rendimento, só resta descobrir a melhor rotina
que se ajuste à nossa realidade”, diz.
Isso quer dizer que o hábito de estar mais esperto à noite —
ou a sensação de se ter mais prazer em pedalar ao pôr do sol com os amigos —
pode falar mais alto do que acordar de madrugada para girar sozinho. Ou então
que o próprio organismo se adapte para que a atividade seja realizada na hora
em que sentimos prazer e não sacrifício, ainda que, fisiologicamente, não seja
o momento mais adequado ou mais propício para o treino. “É uma questão de
adaptação”, avalia o fisiologista. “E a adaptação é a melhor maneira de
garantir a sobrevivência.”
Matéria publicada na Revista VO2 Max, edição 90, março/13
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