Texto extraído do site lacaneando
Andréa Brunetto*
Yo soy um moro judio/
que vive con los cristianos
Y a nadie le di
permiso/ para matar en mi nombre
Un hombre no es más que
un hombre
Y si hay Dios, asi lo
quiso.
El mismo suelo que
piso/ seguirá, yo me habré ido;
Rumbo también del
olvido/ no hay doctrina que no vaya/
E no hay pueblo que no
se haya/ creido el pueblo elegido.
Jorge Drexler y Chicho
Sánchez Ferlosio
As energias que
empregamos em sermos todos irmãos
provam bem
evidentemente que não o somos.
Jacques Lacan
Este trabalho pretende explicitar as visões de
Freud e Lacan sobre a religião, para em seguida discutir a segregação religiosa
e os movimentos fundamentalistas que tem proliferado na atualidade.
A psicanálise se interessa em
estudar a segregação na medida em que investiga os laços sociais.
Em entrevista a revista Cult de
setembro de 2005, Baudrillard faz uma análise da contemporaneidade com sua
queda dos ideais: “os racismos, fundamentalismos e grupos étnicos se apresentam
como um sintoma desesperado de pessoas que procuram uma regra do jogo, porque
não há mais”.
Com Freud e Lacan
A vida é muito difícil de
suportar, afirma Freud. Ela é muito árdua porque proporciona sofrimentos,
decepções e tarefas impossíveis. A tarefa impossível a que Freud se refere é a
busca incansável que o homem empreende para alcançar a felicidade, busca
solitária que cada um deve empreender porque sua solução não vale para os
demais.
E, citando Frederico II, o
imperador da Prússia – “em meu Estado, cada homem pode salvar-se a sua própria
maneira” – marca sua posição: cada um procura ser feliz a seu modo. Nesse
texto, Mal-estar na civilização, diz que isso é contra os valores religiosos,
pois a religião restringe essa escolha, impondo a todos o mesmo caminho2.
Para Freud, a busca da felicidade
é a busca do prazer, propósito do aparelho psíquico desde o início. Mas este
projeto de ser feliz está em desacordo com o mundo. A civilização impõe limites
à satisfação pulsional e o sujeito tem hostilidade para com “a civilização pela
pressão que ela exerce, pela renúncia da pulsão”.3
Os homens não são seres gentis
que desejam amar e ser amados, e que, no máximo, usam a agressão quando
atacados, “são criaturas entre cujos dotes pulsionais deve-se levar em conta
uma poderosa quota de agressividade”. É Freud citando Plauto: o homem é o lobo
do homem.
Os ideais culturais visam unir os
membros da comunidade, vinculá-los por meio de uma meta comum, evitando que
eles se destruam ou destruam os seus semelhantes. E, claro, nesses ideais
também encontrarão satisfação narcísica. Estas três formas de unir os homens
são a religião, a arte e a ciência.
A religião faz parte destes
apoios para tornar tolerável o desamparo humano. Mas Freud a coloca como uma
ilusão, um véu que barra a castração, à medida que faz existir um ser
onipotente, o pai primevo, que Freud teoriza em Totem e Tabu. A existência
desse Um pai, Deus, que tudo pode, permite aos seres humanos dar um sentido a
morte, ao sexo, a vida. Enfim, diante das erupções do real, há alguém que sabe,
que traça o destino dos homens.
Porém, Freud apostava na queda do
poder da religião, afinal “os seres humanos não podem permanecer crianças para
sempre. Têm de, por fim, sair para a vida hostil”. 4
O trabalho de Eros é unir os
homens em famílias, raças, povos, nações e numa única unidade, a humanidade. E
Eros se digladiaria com a pulsão de destruição. “Nesta luta consiste
essencialmente toda a vida e, portanto, a evolução da civilização pode ser
simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida. É essa batalha
de gigantes que nossas babás tentam apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o
Céu”.5
A ideia de Freud é que uma
educação para a realidade teria como meta fundamental preparar os jovens para
lidar com sua agressividade, a qual todo homem se acha destinado. Assim,
combateria as ilusões. Entre elas, é claro, a religião.
Freud apostava que o avanço da
ciência colocaria o homem em uma relação com a verdade e contra as ilusões.
Apostava, consequentemente, em uma queda de poder da religião.
No Seminário 11, Lacan sustenta
que para o homem das luzes, do século XVIII, a religião era uma fundamental
impostura, mas que para o homem do século XX é difícil entender esta descrença,
pois “a religião, em nossos dias, goza de um respeito universal”. Fala mesmo,
em uma entrevista de 1974 em triunfo da religião. A religião consegue dar um
sentido às coisas que outrora eram coisas naturais. A psicanálise propõe uma
verdade sobre o vazio que é diferente do que imediatamente dar um sentido a
tudo que vem do real.6
Lacan afirma que se a religião
triunfar, a verdadeira, o que é mais provável, isso será sinal que a
psicanálise fracassou. Mas não quer dizer que a psicanálise desaparecerá, é até
normal que ela fracasse, pois lida com algo que é muito difícil. E relembra
Freud, colocando a psicanálise entre as profissões impossíveis.
Porém, Lacan acredita que Freud
foi muito incisivo ao afirmar que tudo que é da ordem da religião não
significava, ou mesmo acreditando que um dia o homem iria acordar. Afinal, a
função do pai está no âmago da experiência religiosa. E é pelo assassinato do
Um pai que se erige um totem, se funda o simbólico e, consequentemente, a
civilização. Aliás, isso nos leva a questionar tantas teorizações sobre a
carência da função paterna na contemporaneidade. Será que realmente, com o
triunfo da religião, acreditando em Lacan, podemos falar em declínio da função
paterna?
Não é um paradoxo?
A segregação
Freud já nos mostrou a
dificuldade de cumprir o mandamento de amar o próximo como a si mesmo. Tomarei
esta dificuldade por um viés: amar o próximo inclui a segregação. O laço social
inclui a segregação. Até aí estamos sendo absolutamente freudiana. Segundo
Palácios, o passo a mais, dado por Lacan, decorre de sua teorização sobre o
gozo. O sujeito se ressente de sua falta de gozo e onde há falta de gozo supõe
um responsável. É para este responsável que a segregação e o ódio se dirige.
Assim, não existe nenhum ato
humano que não esteja enfronhado no racismo. É essa a afirmação de Lacan em
Televisão: somos muito precários em nosso mais-de-gozar e mais ainda, vestimos
com um “humanitarismo sentimentalóide nossas atrocidades”. Assim, faríamos uma
operação: quanto mais segregação, mais discurso de igualdade e direito humanos.
Para Lacan, as atrocidades são
humanas, demasiadamente humanas, porém previa uma escalada do racismo e da
segregação. Na proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan sustenta que a
exclusão tem uma coordenada real que foram os campos de concentração. O nazismo
foi um precursor da exclusão, que a universalização do sujeito que procede da
ciência também faz.
Soler afirma que a segregação é
diferente da discriminação. O Antigo Regime, com uma sociedade escravagista,
era discriminatório, mas não segregativo. Cada um tinha seu lugar, pois o
significante mestre era potente, o que permite tratar as diferenças de gozo.
Amós Oz conta que a Jerusalém de
sua infância era um conglomerado de bairros com gente de diferentes culturas:
armênios, árabes, judeus. E, mesmo entre os judeus, que vinham de diferentes
países, se falavam várias línguas. Em Meu Michel chega a dizer que Jerusalém
não existe, que ainda que viva cem anos, nela não se sentirá em casa, pois ela
é plena de fortalezas ameaçadoras, de muros sombrios e altas muralhas. “Cidade
que arde. Quarteirões inteiros pendurados no nada”.
O que todos os bairros tinham em
comum era o fervor messiânico, cada um se acreditando o portador da herança
verdadeira. Havia tensões, cada um em seu bairro, mas não violência. É um
exemplo de uma cidade discriminativa e sem segregação, como Soler afirma. Pelo
menos naquele momento. Todos sabemos como está hoje.
O humor contra o fanatismo religioso
No mês de fevereiro de 2006 foram
feitas charges do profeta Maomé por um jornal dinamarquês, que enfureceram
muito os muçulmanos e detonaram revoltas populares nos países árabes e ataques
terroristas em embaixadas dinamarquesas pelo mundo. Em resposta, os europeus
debocharam mais ainda dos islâmicos. Um ministro italiano deu entrevista na
televisão com uma das charges desenhada na camisa. A pergunta que resultou foi:
as charges deveriam ou não ser publicadas?
Muitos jornalistas, filósofos,
historiadores escreveram, falaram. Então, cremos poder também dar nossa
opinião. Aliás, todos podem.
Salman Rushdie, escritor indiano
que já foi jurado de morte por ter escrito Os versos satânicos afirma que na
Universidade de Cambridge aprendeu uma coisa bem interessante em um paísque,
como a Inglaterra, já foi palco de tanta violência ligada a religião: você pode
duvidar de tudo ,criticar qualquer sistema de ideias, sem ser grosseiro com
seus autores. Nenhuma teoria é sagrada.
E isso, que ele chama o sagrado
direito de ser ofendido é um avanço nas relações culturais.
Ele estava debatendo uma lei
proposta por Tony Blair que pretendia introduzir uma proibição a toda forma de
incitamento ao ódio religioso. “Nietzsche considerava o cristianismo a maior
desgraça da humanidade. Ele deveria ser perseguido?” Uma lei assim, que censura
e tolhe as opiniões, segundo ele, reforça o racismo.
Ele fala que foi dar uma palestra
em Washington, em março de 2003 e um senador republicano lhe perguntou porque
Osama Bin Laden disse que eles são um país descrente, “não há nada que nós
respeitamos mais do que Deus”. Ao que ele, Rushdie, respondeu ‘eu suponho que
ele não pense assim’. Tomando a sua cultura como o modelo, o senador
republicano se mostrou tão intolerante com a religião do outro quanto Osama Bin
Laden. E isso surpreendeu Rushdie, a indignação sincera do homem.
O filósofo esloveno Slavoj Zizek
afirma que a medida do verdadeiro amor é poder insultar o outro. Se há amor, se
pode dizer coisas horríveis ao outro e nem por isso se faz uma guerra. E que
isso de respeito pela cultura do outro, do politicamente correto parece a ele
racismo. E ele mesmo se pergunta: como posso estar tão seguro de que não sou um
racista? “Só há uma maneira: quando se pode trocar insultos, deboches, chistes
sujos com um membro de uma raça diferente, e ambos sabemos que por trás não tem
uma intenção racista. Se, ao contrário, jogamos o jogo politicamente correto
‘oh, como te respeito, que interessantes são teus costumes’, é um racismo
invertido”.
Tanto Rushdie quanto Zizek
apontam a tolerância, aprender a conviver com o diferente, inclusive,
criticando e aceitando a crítica, como a saída para o fundamentalismo
religioso. Sustentamos que a segregação em nosso mundo atual tem envolvido
muito mais os credos religiosos que as raças.
Se já sabemos com Freud que o ódio
está no âmago dos laços sociais, como conseguir tal tolerância? O que poderia
nos proteger da violência religiosa, como temos visto dia a dia nos
noticiários?
E não apenas entre religiões
opostas. No começo do ano de 2006, no Iraque, xiitas e sunitas, ambos
islâmicos, começaram uma onda de violência declarada – dizemos declarada, pois
a hostilidade já vem de séculos.7 É o narcisismo das pequenas diferenças. Freud
já nos disse que onde as pessoas têm mais coisas em comum é onde se tecem as
maiores batalhas.
Em quatro cartas trocadas entre o
escritor japonês Kenzaburo Oe, Nobel de 1994, e o israelense Amós Oz, a
segregação e a tolerância são discutidas. Hiroshima é para Kenzaburo um trauma
assim como Auschwitz para Oz. Kenzaburo acredita que a tolerância será a
questão do século XXI – as cartas foram trocadas em 1998 – mas previu uma
corrente forte em sentido contrário. Segundo ele, a esperança é o poder da
imaginação, cada pessoa tentando imaginar-se no lugar da outra.
Amós Oz responde que descobriu a
cura do fanatismo: o bom humor. “Nunca vi um fanático bem-humorado e nem um
bem-humorado se tornar fanático.8
Zizek e Oz apostam no humor. Esta
é a aposta freudiana também. O humor é um triunfo do eu e do princípio do
prazer. Uma forma de lutar contra a “crueldade” do real. Freud diz que o humor
é uma rebeldia, é como dizer: “Aqui está o mundo, que parece tão perigoso! Não
passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma
pilhéria”.
Infelizmente, o humor é um dom
raro, precioso, que poucos têm. Oz o sabe, já que alega que vai concentrar o
bom humor em pílulas e distribuí-lo. Assim, mesmo o humor é uma saída precária,
pois ele não é contagioso. Não é um dom distributivo.
Voltando agora às charges do
Profeta Maomé, faremos uma analogia. Quando convidamos alguém para freqüentar
nossa casa, não é educado dizer ao convidado que ele está mal-vestido ou que
não usa os talheres direito. Ser tolerante é saber o que se pode dizer a
alguém. É levar em conta o que o outro pode saber.
Discordamos de Salman Rushdie que
se possa questionar tudo, e mesmo de Zizek que se pode suportar tudo porque se
ama. Afinal, é na cama onde o amor se deita que acontecem as piores tragédias.
A verdade tem limites, não a dizemos toda. Ainda que pese as afirmativas de que
os muçulmanos sejam fundamentalistas – mais uma universalização.
E além do mais, achincalhar a
religião do outro é como – com as devidas proporções – dizer ao nosso
convidado: coma direito, você está segurando o garfo de forma horrível. Temos
certeza que qualquer pessoa bem educada acharia isso um horror. E além do mais,
Freud já nos mostrou que o humor envolve quem o faz e quem o assiste. E com
essas charges só houve graça para um lado.
É por isso que a epígrafe desse
trabalho é um trecho da música milonga do mouro judeu.
Seus autores dizem que mesmo pela
Jerusalém dourada, de mil vidas mal gastadas em cada mandamento, a guerra é
muito má escola, não importa o disfarce que ela use. Um homem não é mais que um
homem. E se há Deus assim ele o quis”.
Notas
1 Trabalho apresentado no II
Simpósio Internacional sobre Religiões, Religiosidades e Culturas, em abril de
2006, na cidade de Dourados.
2 Sigmund Freud. “O mal-estar na
civilização” (1929), in: ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XXI.
3 Sigmund Freud. “O futuro de uma
ilusão” (1927), in: ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XXI, p. 26.
5 Ibid, p. 145.
4 Ibid, p. 64.
6 Citamos o exemplo de Zizek:
Jerry Falwell, figura conhecida americana, diante do ataque ao World Trade
Center afirma que isto era um sinal
de que Deus não mais protegia os
EEUU, porque eles haviam tomado um caminho de maldade, homossexualidade e
promiscuidade.
7 Os xiitas, que são maioria e
que foram espezinhados no governo de Sadam Russein, descobriram que a intrusão
do governo americano com suas eleições arranjadas lhes favoreceriam, já que são
em maior número. Vejam que até um dispositivo democrático como a eleição pode
ser usada para acirrar guerras.
8 Continuando o texto de Oz: “Em
outras palavras, meu tipo de messias chegará rindo e contando piadas. (…) O
fanatismo é muito contagioso.
Pode-se pegá-lo no próprio ato de
tentar curá-lo. Conheço o perigo de se tornar um fanático antifanatismo. Assim
como a violência, o fanatismo pode se disfarçar de várias outras coisas”.
Referências Bibliográficas
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Vol. 21. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1976.
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SOLER, C. Sobre a segregação. In:
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ZIZEK, S. La medida del verdadero
amor es: Puedes insultar al outro. Entrevista dada a Sabine Reul e Thomas
Deichmann.
Andréa Brunetto é Membro da
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano,
Psicóloga, Mestrado em Educação.
e-mail: brunetto@terra.com.br.
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